sexta-feira, 15 de maio de 2015

Mais um dia

Eu nunca tive uma relação de ouro com meu pai. Sempre amei e defendi minha mãe e criei uma antipatia, com o tempo, por meu pai, devido a brigas de casal que aconteciam em casa, cada vez mais frequentes em certa época. Isso de fato me fez falar pouco com meu pai, manter meu laço cada vez mais fraco e distante, até uma época em que o xinguei enormemente e disse que o odiava para gente da própria família. 

Meu maior erro como ser humano, eu sei, mas é que eu, como um apaixonado por minha mãe, não entendia o porquê daquele “monstro” que gritava dentro de casa, tinha que me dar carona para a escola todos os dias, tinha que ligar para perguntar onde eu estava e para perguntar se vou demorar a chegar em casa. No carro, aquela tortura de ficar fechado, ao lado do “inimigo” era insuportável. Contei as vezes em que bebi escondido durante as aulas do médio e ele foi me buscar, cansado depois de um dia de trabalho, e percebia o cheiro de bebida e não dizia nada. Claro, nada se dizia no carro até chegar em casa. Isso era meu maior castigo. Passar minutos, quieto, só ouvindo a respiração daquele cara. Insuportável.

Isso melhor gradativamente com o correr dos anos. Agora, em que estou imensamente aprofundado em conceitos que sagram o seio familiar e mais velho e maduro, entendo o tamanho da importância do meu pai, e o respeito imensamente, praticamente sendo o oposto do que fui há menos de 3 ou 4 anos atrás. É, acredito que estou sempre evoluindo para melhor. E isso fez com que minha relação com meu pai fosse mais próxima, claro que não conversamos sobre tudo, não fofocamos e eu não busco conselhos com o mesmo, aprendi na época “negra” a me guiar, mas não somos próximos, de maneira alguma. Eu o entendo, o respeito e o amo. É sublime de um jeito que é difícil de se explicar.
Por que começar um texto tratando de um desastre moral e familiar? Bom, para começar isso daqui é sobre meu dia, sobre a experiência que tive hoje, e como eu chorei e me arrepiei diversas vezes seguidas.

Há algum tempo que estou evitando tirar a carteira de motorista, não gosto muito de carro e a carteira, pra mim, era uma forma de mostrar que eu estava contra minhas próprias decisões, sei lá. Não gosto de carro e moro em São Paulo, é inconcebível idolatrar carros aqui, eu entendo isso e simplesmente não desejo isso pra mim. E, claro, meu pai disse que era para eu fazer e que pagaria. Aquele típico “faz lá, vai” que estou até acostumado de vir dele. 

Enfim, hoje, sexta-feira, fui na maldita autoescola fazer a matrícula, lá, fui surpreendido por não poder pagar as seis parcelas, descritas num banner que anunciava a promoção na entrada, em espécie, só no cartão. Contornei a situação e sai de lá cheio de recibos, contratos e papeis assinados. Liguei para meu velho pai para avisar do ocorrido e disse que estava tudo tranquilo, ok, desliguei. 
Liguei o player, e começou minha redenção. Ao passo das primeiras palavras da música, eu adentrava o metrô. Na janela, iam passando-se as paisagens de todos os dias, aquela montanha cortada ao meio para passagem dos trilhos, os prédios a uns 15 metros de distância e tudo mais. Abriu no shuffle um podcast sobre Bohemian Rhapsody, e aí começou tudo. O apresentador dizia sua experiência da primeira vez de ouvir a música, estava em uma sala com a garotada da faculdade quando o vinil começou a tocar. Imediatamente lembrei de minha relação, hoje, com meu pai. O único contato que tenho com ele, é durante o Jornal Nacional, sempre. Durante ou antes do jantar. É impressionante como eu realmente tenho este momento como sagrado. Odeio quando falam por cima das vozes dos apresentadores do dia, odeio quando inventam de falar sobre o dia de cada um durante esse momento. Eu só quero ver o jornal. Eu quero ter a lembrança de meu pai aqui, nesse momento, viva e falando dentro de mim. Ele não está morto, longe disso. Mas isso é sagrado, essa idéia de cada um estar em um sofá, comentando sobre as coisas que acontecem e que passam no jornal, completamente desarmados e livres me entusiasma tanto, mas tanto, que eu realmente tenho isso como obrigatório, todos os dias. Meu pai está vivo aí.

O apresentador conta estrofe por estrofe sobre o garoto pobre, que pondo a arma na cabeça de um homem, o mata. E ele fala a coisa mais verdadeira que se pode haver, life had just begun, e, claro, easy come, easy go. Meu pai é um herói e o ídolo, realmente um gigante inatingível e amigão para meu irmão do meio, para o mais velho, é um conselheiro. Pra mim? Eu ainda não tenho essa resposta. Não tenho essa descriçao pra ele. Minha vida acabou de começar, tenho 18 anos, mas é tão fácil do jeito que nos distanciamos pelos anos da adolescência, que isso fácil se foi. 

Nessa hora, eu já andava para a faculdade, e comecei a chorar. Muito. Parei na rua para tentar me recompor, mas não foi assim que funcionou. A ópera começou e eu ainda não entendia o que estava acontecendo comigo, aqueles gritos sobrenaturalmente postos ali mexiam muito comigo. Diretamente me faziam lembrar do meu progenitor. Quanto mais chorava, mais mecanicamente andava e mais imóvel eu ficava ao andar. E ali andei, os 20 minutos que gasto para chegar ao portão imóvel. Estatelado. Esfacelado. Eu fui para um plano onde não sentia mais o corpo, só a música nos ouvidos e a cabeça longe. Chorando e não sentindo mais nada. Completamente arrepiado eu cheguei na aula. Desliguei o som e entrei no campi. Olhei para os céus, o vento gelado finalmente encontrou meu rosto e me entregava a mensagem que meu pai me mandava do outro lado do estado, no trabalho. Tenha um bom dia, meu filho.